O CORPO EM RESTAURAÇÃO - 8º ANO/ 2016.
Cicatriz: O corpo em restauração
Lúcia Helena
de Oliveira
Quando
alguém se machuca, o organismo começa imediatamente a restituir a área perdida
no ferimento. Constrói, assim, a cicatriz.
Ao se olhar
de perto, muito perto, qualquer machucado à-toa é um tremendo desastre. A
barreira da pele racha; células que deviam permanecer associadas se separam;
nervos se esgarçam; vasos sangüíneos se rompem. O microscópio mostra que o
resultado de uma espetadela de agulha ou de um arranhão com a lâmina de
barbear, por exemplo, tem lá suas semelhanças com o efeito destruidor de uma
bomba. Para consertar o estrago, reconstruindo a região do corpo em ruínas, os
organismos vivos acionam um dos mais instigantes mecanismos biológicos — a
cicatrização.
Sem ela,
toda ferida seria uma brecha fatal, servindo de entrada para micróbios e de
saída para o sangue. Mas, apesar de sua importância, os cientistas ainda não
conhecem direito cada detalhe desse fenômeno.
Acredita-se
que os vasos sangüíneos sejam o ponto de partida. O tecido interno das veias e
artérias, conhecido por endotélio, é impermeável. No entanto, quando o sangue
vaza dali, entra em contato com estruturas permeáveis. As moléculas do plasma,
a parte líquida da composição sangüínea, conseguem entrar, por exemplo, nos espaços
entre as células dos músculos e da derme. Encharcados dessa maneira, esses
tecidos passariam a liberar uma série de substâncias capazes de dar o primeiro
impulso à formação da cicatriz.
Certos tipos
de células sangüíneas, as chamadas plaquetas, também reagem ao ambiente
estranho, o lado de fora dos vasos em que estão acostumadas a correr. Elas, que
antes circulavam livres e soltas, colam umas nas outras e se empilham nas
bordas dos vasos lesados por onde o sangue está escapando. Depois, amontoadas,
começam a soltar microbolsas que, ao estourar, esparramam seu conteúdo.
Trata-se de substâncias que vão se juntar a outros ingredientes sangüíneos
para, numa espécie de complô, modificar uma proteína circulante, o
fibrinogênio.
Cercado por
essas moléculas, o fibrinogênio não tem saída a não ser mudar de cara e, até,
de nome. Transforma-se, então, em fibrina e assume a forma de um fio, capaz de
tecer uma teia de trama tão fina, que as células do sangue não conseguem
atravessar. Essa teia é o coágulo, que logo depois se desidrata e, ao secar
desse jeito, forma a popular casquinha do machucado. Sob a sua proteção,
acontecerá a cicatrização propriamente dita.
Nem sempre,
porém, tudo acontece dessa maneira: quando se cortam grandes artérias, a
pressão do fluxo sangüíneo é forte o bastante para arrebentar a teia de
fibrina. Daí, só restam a linha e a agulha, para costurar o rasgo da pele. Com
a sutura medicinal ou com a emenda natural de fibrina, não importa, a região
machucada logo começa a emitir pedidos de socorro.
Na área
lesada, falta oxigênio pela ausência da circulação, e os nervos ou foram
cortados ou deixaram de enviar suas costumeiras mensagens, intoxicados por
substâncias resultantes da morte de células vizinhas. Esse conjunto de efeitos
funciona feito um sinal de S ao cérebro. “É acionada uma série de mecanismos,
típicos da inflamação, cujos sintomas são calor, rubor e dor”, explica o
imunologista Mário Mariano, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da
Universidade de São Paulo. “O sistema nervoso reage, ordenando a abertura de
pequenos vasos sangüíneos, que antes não estavam funcionando. Aliás, essa é a
causa da vermelhidão ao redor da área machucada”, descreve.
A medida
facilita a chegada de um batalhão de glóbulos brancos ao local do acidente.
Entre eles, os chamados fagócitos, cujo nome, do grego, significa células
capazes de comer. “Elas trabalham como lixeiros, limpando a área”, define o
professor Mariano. “Engolem e digerem micróbios, que tentam aproveitar o rombo
da ferida para invadir organismos sadios. Além disso, destroem os restos de
células mortas no ferimento.” Enquanto fazem o seu serviço, os fagóticos ainda
liberam uma diversidade de moléculas, cuja imensa família é conhecida por
citoquina.
Esse nome,
mais uma vez de origem grega, significa ativador de célula. Não é para menos.
Certas citoquinas, como a interleucina VI (IL6), estimulam a síntese de
proteínas, acelerando a reparação dos tecidos. A interleucina I (IL1), por sua
vez, ajuda na quimiotaxia, ou seja, provoca a migração de mais e mais células
de defesa para a região em perigo. Há, ainda, o TNF (sigla em inglês de Fator
de Necrose Tumoral) e outras substâncias, que aumentam a permeabilidade dos
vasos, permitindo a saída de alguns glóbulos brancos, para atacar direto na
vizinhança arrasada.
Esse mesmo
tipo de citoquina induz à formação de microvasos sangüíneos sob a casca da
ferida. Essas pequenas artérias serão usadas para levar nutrientes e oxigênio
às células encarregadas de trabalhar pesado, enquanto durar a cicatrização.
Quando o serviço estiver terminado, no entanto, os vasinhos descartáveis serão
eliminados. “Esses são apenas exemplos, porque a cada dia são descobertas novas
citoquinas, com funções diversas”, esclarece o imunologista. O único efeito
colateral de algumas dessas substâncias é provocar febre, comum quando alguém
sofre um corte muito grande.
“Temos
fortes suspeitas de que as citoquinas são imprescindíveis na cicatrização”,
reforça o gastroenterologista Sérgio Mies, da Faculdade de Medicina da USP, que
é especialista em fígado — órgão capaz de se regenerar completamente, quando
lhe arrancam um pedaço. Mies desconfia de que as citoquinas estejam envolvidas
na mudança de metabolismo das células participantes da cicatrização (veja
quadro). “Elas passam a desprezar oxigênio, para retirar a energia
exclusivamente da glicose. Isso, quem sabe, torna o processo mais rápido e
eficiente.”
Outras
substâncias fundamentais para a cicatrização são liberadas pelos macrófagos,
soldados de elite do exército de fagócitos, que se acumulam no ferimento. Cerca
de três dias após o corte, quando estão no auge de sua comilança — ou
fagocitose, como preferem os cientistas —, os macrófagos passam a secretar
moléculas muito especiais. A entrada delas em cena marca o início daquela que
talvez seja a etapa mais importante, ou seja, a produção dos materiais que irão
soldar o rombo no tecido e formar a cicatriz.
As moléculas
produzidas pelos macrófagos vão agir no tecido conjuntivo, que em condições
normais liga as diversas estruturas corporais, feito uma argamassa. Ele é
constituído por diversos tipos de fibras e fibroblastos, células que em geral
estão adormecidas. “Uma vez ativadas, graças à ordem química enviada pelos
macrófagos, essas células passam a secretar duas substâncias, que irão unir a
ferida”, diz Mariano. Uma delas é o colágeno, comparável aos ferros de uma
construção; a outra é a chamada matriz extracelular, uma mistura de moléculas
de proteínas e açúcares, com função semelhante à do cimento, que dá sustentação
às barras de metal. Na verdade, os fibroblastos só conseguem trabalhar a
ple--no vapor, porque são alimentados por aqueles vasinhos recém-criados por
algumas citoquinas.
Uma outra
célula acelera ainda mais o serviço. Trata-se da miofibroblasto, que se agarra
ao colágeno: feito um elástico, ela aproxima as extremidades das fibras, que
antes estavam bem separadas. Com isso, faz pressão no sentido de fechar o
corte. Apesar dessa força, a reconstrução do tecido conjuntivo costuma demorar
cerca de dez dias. Pouca gente percebe que é tão demorada a cura de um
machucado e esse prazo vale também para um simples furo de agulha, que some,
superficialmente, em menos de três dias. Na verdade, por baixo da pele, ele
leva tanto tempo para cicatrizar quanto um corte grande.
Quando
termina a cicatrização, as bordas da ferida estão reunidas, as células
danificadas já foram varridas da área pelos macrófagos lixeiros, os vasinhos
usados para nutrir os fibroblastos desaparecem. Resta, sob a pele nova em
folha, um tecido praticamente desprovido de células — que, diga-se de passagem,
costuma ser idêntico na maioria das espécies animais. Decididamente, ele não é
igual ao que havia ali, isto é, ao tecido conjuntivo. Pode, sim, ser comparado
à camada de cola em um vaso de porcelana restaurado.
É por isso,
por exemplo, que doentes com cirrose hepática costumam morrer. A doença,
afinal, pode ser descrita como um processo de cicatrização desgovernado. Por
motivos ainda não muito bem esclarecidos, os fibroblastos do fígado das pessoas
com cirrose entram em hiperatividade e secretam enormes quantidades de fibras
de colágeno. A cicatriz resultante cresce sem parar — e ela, por ser um
material inerte, não faz o trabalho habitual do fígado. Por sua vez, sobra cada
vez menos espaço para as legítimas células hepáticas, que em número menor não
dão conta do recado, pois o volume de serviço continua o mesmo. No final, elas
entram em falência.
Como se formam as unhas? Por que elas crescem?
Dá para dizer que a unha é pouco mais que um cemitério de células:
o tecido que a compõe é formado por células que morrem debaixo da pele dos
dedos e são continuamente empurradas por novas camadas que não param de ser
produzidas. No caminho rumo à ponta do dedo, as células defuntas ganham doses
de queratina e outras proteínas, que fortalecem as unhas e dão a elas o aspecto
de lâmina. Ironicamente, a unha, um tecido morto, continua crescendo após a
morte do seu dono! Isso ocorre porque a matriz das células - algo como o
"berçário" das células de unha - usa pouquíssima energia para
produzi-las. Quando o sujeito passa desta para melhor, a energia acumulada em
vida garante a produção durante alguns dias póstumos.
Mas para que servem essas "mortas-vivas"? "As unhas
protegem os dedos dos pés e das mãos e exercem um papel significativo na
sensibilidade dos dedos", diz o dermatologista Valcinir Bedin, presidente
da Sociedade Brasileira de Medicina Estética. Entretanto, nem sempre elas
tiveram essas funções: nossos ancestrais peludos e selvagens usavam as unhas
como garras, um mecanismo de ataque e defesa. Com o passar do tempo, elas
ficaram fininhas e passaram a cobrir apenas a parte de cima dos dedos, uma
transformação que facilitou a manipulação de objetos e os trabalhos de
precisão. Claro que, para não prejudicar essas habilidades, é necessário dar
aquela cortadinha básica nas unhas de vez em quando. Por mês, elas crescem
cerca de 3 milímetros nos dedos da mão e 1 milímetro nos dos pés. Mas cuidado:
é bom cortá-las com uma tesoura e não com os dentes. "Quando se engolem
fragmentos de unha, eles vão se acumulando no intestino e podem chegar até a
perfurar o apêndice", afirma Bedin. Fora isso, é bom ficar de olho em
qualquer mudança no jeitão delas, para evitar os problemas que a gente destaca
na ilustração ao lado.
Quando um osso se quebra, os vasos sanguíneos em seu interior se
rompem, causando sangramento e a formação de um coágulo. O local inflama, mas,
em 24 horas, as extremidades dos vasos rompidos são vedadas, estancando quase
por completo a hemorragia. A região da fratura fica cheia de pedacinhos do osso
quebrado e tecidos mortos, que são removidos pela ação de células chamadas
osteoclastos. Elas fagocitam ("comem" e "digerem") esses
fragmentos. O processo pode durar semanas, dependendo do tamanho da lesão. Desde
as primeiras horas após a contusão, também entram em ação os angioblastos,
células responsáveis pela formação dos vasos sanguíneos. Elas darão origem a
novos vasos dentro do osso e irão reparar outros que se romperam com a fratura.
Ao mesmo tempo, a medula óssea começa a se regenerar. Composta basicamente de
sangue e gordura, ela fica dentro do canal medular do osso, que vai sendo
preenchido por novas células. A reconstituição óssea em si se dá a partir de
duas membranas bastante vascularizadas: o periósteo e o endósteo. Enquanto o
periósteo envolve por completo os ossos, o endósteo é uma camada mais fina que
os reveste internamente. Tanto o periósteo quanto o endósteo têm capacidade de
produzir as células chamadas osteoblastos, que darão origem ao tecido ósseo. Um
ou dois dias após a fratura, os osteoblastos já começam a invadir o interior e
a superfície do coágulo. A deposição de osteoblastos no local da fratura leva à
formação do calo ósseo, que surge tanto externamente quanto internamente.
Enquanto isso, o coágulo vai diminuindo, pois as células que o formam continuam
sendo "devoradas" pelos osteoclastos. Em até duas semanas, o calo,
formado também por tecido fibroso e cartilaginoso, consegue unir as
extremidades da fratura com a parte intacta do osso. Em seis semanas, a fissura
desaparece. A fase seguinte, que pode durar meses, é a da consolidação, quando
ocorre a calcificação do osso. O cálcio, que confere resistência aos ossos e
chega ao local pela corrente sanguínea, ajuda a reparar de vez o estrago. A
etapa final e mais longa da regeneração óssea - pode levar até dez anos - é a
remodelagem. Os osteoclastos atacam de novo, "lixando" a superfície
do osso para reduzir o calo. Ao final, a área da fratura, que até então
permanecia mais suscetível a quebras, volta a ter a resistência de antes.
NA FÔRMA
O osso é um dos poucos órgãos capazes de se regenerar por conta
própria. Mas, claro, ele não faz mágica. É por isso que, na maioria das vezes,
é preciso uma ajudinha médica para que eles colem na posição correta. É quando
entram em ação o bom e velho gesso e, em casos mais graves, os pinos de metal.
FRIO DE DOER
Muita gente que já sofreu alguma fratura reclama de dores no local
quando o tempo esfria. Isso ocorre porque, em geral, a elasticidade da área que
quebrou e do resto do osso fica diferente. Nas mudanças de temperatura acaba
rolando um estresse nessa região, o que causa a dor.
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