UMA PUXADA E A VIDA FICA MELHOR
Uma puxada e a vida fica melhor - Thaís Botelho
Técnica de correção de orelhas de abano se aprimora e crianças a partir de 6 anos agora passam por cirurgias mais rápidas, menos invasivas e com nível de dor reduzido
Dumbo. Orelhão. Fusquinha de porta aberta. Quem nasceu com orelhinhas de abano sabe como cala fundo ouvir esses apelidos. A cirurgia para correção dessa característica é feita em crianças no Brasil há pelo menos cinco décadas; mas há quatro anos foi aprimorada por um grupo de cirurgiões plásticos. A intervenção agora é mais rápida (o tempo de operação caiu de duas horas para quarenta minutos), mais barata (de até 10 000 reais para 1 650) e menos dolorida (não há pontos internos). Por tudo isso, ficou mais acessível e 3 5000 crianças já se beneficiaram das novas técnicas. A carioca Kamily Rodrigues, 7, nasceu com as orelhinhas abertas. Sua mãe intuiu que ela teria problemas com as outras crianças, mas era professora na escola em que Kamily estudou até os 6 anos e sempre dava um jeito de proteger a filha das zombarias. "Quando mudou de colégio, neste ano, Kamily foi operada para evitar que as brincadeiras maldosas começassem", conta Andressa Rodrigues. Ela sugeriu cuidadosamente a operação e Kamily gostou da ideia. "Agora que tenho a orelha certinha, uso rabo de cavalo toda hora", diz a menina. Ela foi operada pelo cirurgião plástico Marcelo Assis, criador do Projeto Orelhinha, uma ONG com sede em Campinas, interior de São Paulo, que atende, desde 2010, crianças e adultos com renda que em geral tornaria a intervenção inacessível. "Em comparação com a técnica tradicional, nós tiramos mais pele e cortamos a cartilagem. Dessa maneira, podemos aplicar o principal diferencial da nossa prática, que é remodelar, manualmente, a cartilagem que sobrou, em vez de refazer a orelha por meio de dezenas de pontos", explica o médico. Para que o novo desenho se solidifique, o paciente fica quatro dias com um molde de algodão nas orelhas, que é preso por meio de faixas de gaze que envolvem a cabeça. Depois, por mais trinta dias, é preciso usar uma faixinha de elástico, mais simples, na hora de dormir. O corte que é feito na parte de trás das orelhas é costurado com monocryl, um material que, ao contrário do náilon tradicional das suturas, é absorvido pelo corpo.
Orelhas de abano são o motivo número 1 de bullying nas escolas. "As crianças afetadas se recolhem, interagem pouco com os amigos e durante a aula, e essa vergonha pode prejudicar o aprendizado", diz a psicopedagoga Nívea Fabricio, presidente da Associação Nacional de Dificuldades de Ensino e Aprendizado, Ginecomastia - disfunção hormonal que faz crescer as mamas de meninos adolescentes - e estrabismo são os dois outros principais motivos. Ambos tratáveis. A ginecomastia tende a desaparecer sozinha em 90% dos casos. Para os casos remanescentes, há a indicação de cirurgia. O estrabismo costuma ser tratado com exercícios oculares, tampões e óculos. Por fim, a cirurgia de reposicionamento de alguns ou de todos os seis pares de músculos oculares pode ser feita em crianças a partir dos 5 anos.
Quando o guarda municipal paulista, Saulo Correa tinha 15 anos, viu desabar a alegria de ter ingressado em um colégio técnico. "Não imaginei que raspariam minha cabeça no trote. Careca, eu não conseguia mais esconder minhas orelhas e virei motivo de chacota", conta. Correa carregou a mágoa para a vida adulta e acredita que ela o impediu de se destacar no trabalho. "Sempre sentei na última fileira durante o treinamento para guarda e, já atuando, dei um jeito de não ter de fazer ronda escolar, por medo de sofrer gozação dos alunos." Por causa dessa experiência, Correa entendeu os problemas de seu filho. "Quando Caio deixou de ir à escola de futebol e chegava triste da escola, eu logo percebi. Perguntei se queria fazer a cirurgia e ele concordou, mas desde que eu fizesse também." Pai e filho, de 40 e 14 anos, foram operados no mesmo dia, em junho do ano passado, em procedimentos que duraram quarenta minutos, apenas com anestesia local e sedação. "Agora não preciso mais viver de boné", diz Caio.
Existem mais de 100 técnicas de otoplastia, a operação de correção de orelhas. Algumas exigem anestesia geral, em outras toda a cartilagem é raspada e depois reconstruída. Naturalmente, só um médico especializado pode identificar o procedimento mais adequado. Todos podem ser feitos em crianças a partir do fim dos 6 anos, época em que a cartilagem para de crescer. Entre 2% e 8% da população tem orelhas de abano e muitas vezes também grandes, ocupando mais de 30% do tamanho do rosto, proporção considerada ideal. É claro que muita gente que nasce com os flaps levantados não recorre ao bisturi (no Orelhinha, só é operada a criança que falar para o médico que quer fazê-lo, não basta o desejo dos pais). O presidente Barack Obama, que costuma fazer piada com suas orelhas, já disse: "O Shrek foi inspirado em mim". A lindíssima atriz americana Kate Hudson passou a infância inteira ouvindo do irmão o conselho para ter cuidado para não levantar voo em dias de vento. E foi um golpe de vento que traiu Nigella Lawson e revelou o segredo que não aparece nas poses sensuais de seus programas de cozinha.
(texto publicado na revista Veja edição 2377 - ano 47 - nº 24 - 11 de junho de 2014)
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